Como nutrir o seu bebê como os sabores de nossa ancestralidade
- Danielle Fava
- 4 de jun.
- 5 min de leitura
Por Danielle Fava, nutricionista e neuropsicopedagoga. Embaixadora, protagonista e membra de Mães Negras do Brasil.
Olá mulheres maravilhosas!
Vamos falar de mais um tema que passamos com nossos filhos? No artigo de hoje quero trazer um tema delicado que é a introdução alimentar. Será que é possível realizá-la de forma afrocentrada?
A introdução da alimentação complementar é um momento singular, muito esperado por nós mães e que reflete muitas experiências para o bebê, pois ele será apresentado não somente a diferentes alimentos, mas a outras novidades como utensílios, como prato, copo, talheres e a sua forma de nutrição passa a ter novos sabores, cheiros e texturas. É uma fase de grande aprendizagem e isso demanda muita paciência.

Embora seja uma fase de gostosas descobertas, também pode gerar estresse para os pais e/ou cuidadores e para a própria criança. Por isso, é fundamental que essa introdução ocorra de forma gradual, flexível e com dedicação de tempo e paciência pois, precisamos considerar não somente a ingestão nutricional adequadas, mas outros fatores como a higiene dos alimentos, suplementação de vitaminas e minerais caso haja necessidade, bem como o fornecimento de água e a forma como ocorre essa introdução no que concerne à consistência e utensílios utilizados.
Nessa perspectiva, temos a introdução alimentar como um contexto não só para formar o repertório alimentar do bebê, mas de descoberta do mundo através dos sentidos e, por que não, da ancestralidade e do afeto? Quando guiada de forma cuidadosa, ela se torna um espaço potente de construção de vínculo, de formação de identidade, de inserção da cultura, de contato intergeracional e de fortalecimento dos nossos modos de viver.
Eu sei que muitas dúvidas nos surgem neste momento. Quais alimentos posso dar ao bebê? De que forma? E claro, sempre buscamos como nossas mães e avós faziam, o que é muito importante ouvir esses conselhos. Mas também, precisamos entender em qual contexto nossas mães nos criaram e como as informações chegaram para ela? De qual perspectiva vieram as informações que foram passadas para nossas mães?
Por exemplo, eu nasci na década de 1980. Exatamente no final de 1980. Nesta época, o surgimento de produtos industrializados estava a todo vapor. O leite em pó era o auge e as propagandas reforçam que ele era muito melhor para os bebês do que o leite materno. As mulheres tinham mais liberdade para trabalhar fora, não tínhamos tantos direitos trabalhistas, precisavam manter seus empregos, época de inflação, crises econômicas (quem viveu anos 1980 sabe a loucura que foi) e as mulheres precisam se sustentar ou ajudar as famílias. Então, o leite em pó era o salvador para que elas pudessem desmamar e manter seus empregos.
Mas minha mãe me amamentou. Ela deixou o emprego dela, e me amamentou até o dia em que se descobriu grávida da minha irmã, iludida com a história de que por estar amamentando não engravidaria. Mas, como o planejamento dos meus pais eram dois filhos, as coisas deram certo mesmo que do jeito errado.
O que eu quero dizer com essa história? Que precisamos respeitar a história de nossos ancestrais, de nossas avós, de nossas mães, mas entender o que cabe a nossa realidade. É muito comum ouvir falar quando você nasceu eu te dava tal coisa e você está viva. Tem saberes que irão caber e saberes que talvez precisaram ser adaptados, como por exemplo houve o tempo da cultura do leite em pó por pressão da indústria.
Dessa forma, durante a introdução alimentar, o que vamos oferecer ao bebê são os alimentos que fazem parte da cultura alimentar da família, no seu contexto, reafirmando que ela pertence àquela rede de cuidado. É o feijão, o inhame, a abóbora, a mandioca, o milho, o arroz, a banana-da-terra cozida... tudo isso comunica à criança que ela é parte de uma história viva, que segue pulsando no dia a dia da cozinha. Perceba, então, que não é preciso ofertar um tipo de alimentação diferenciada para o bebê. Ele pode consumir os mesmos alimentos que a família irá consumir naquela refeição, inclusive, pode e deve estar a mesa com os demais membros da casa.

É importante para que o bebê já se habitue a fazer as refeições em família, pois é um estímulo. Apenas, a forma de preparo e apresentação devem ser diferenciados, usando temperos naturais e preferencialmente, servidos amassados ou, sempre que possível, em pedaços, possibilitando que os bebês exercitem suas escolhas e comam sozinhos, com as mãos, até se sentirem satisfeitos, uma vez que a criança aprende por observação e repetição de comportamentos. Muitos desses alimentos são ricos em nutrientes e fazem parte de um repertório culinário potente, mas que infelizmente foi marginalizado pelas imposições de uma lógica eurocentrada de alimentação.
Quando a introdução alimentar é pensada a partir de uma perspectiva eurocentrada e descolada da realidade cultural da família, perde-se a chance de fortalecer a identidade da criança e corre-se o risco de reforçar uma ideia equivocada de que há alimentos “melhores” apenas por serem associados a culturas dominantes. Isso gera distanciamentos. A família se sente insegura, desautorizada, e a criança é afastada de sua história desde cedo. Muitas vezes, alimentos cotidianos e afetivos são substituídos por opções industrializadas, caras e sem conexão com o território em que se vive. A consequência disso é uma alimentação despersonalizada, frágil em afeto e pouco sustentável.
Vale lembrar que essa abordagem afrocentrada dialoga diretamente com as recomendações do Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 Anos do Ministério da Saúde. O guia incentiva a valorização da comida de verdade, do comer em família, da alimentação como expressão de cultura, e orienta que se respeitem os hábitos alimentares do grupo familiar.
Quando o Lucas começou a sua introdução alimentar, raramente eu fazia alguma comida diferente para ele. E vou mostrar para vocês um exemplo, que, embora não seja uma comida afrocentrada, mas é uma comida oriental (o que também mostra a importância não negar outras culturas, mas ensiná-las), ilustra bem como dá para fazer qualquer tipo de comida para bebês similar à da família:

Alimentar com consciência é também um ato político, de cuidado e de liberdade. E a liberdade começa quando a gente se reconhece nos sabores que nos formam.
Um grande abraço!
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